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O Direito ao
Conhecimento
Pode o sistema de patentes afetar a inalienabilidade dos saberes
dos povos indígenas e populações tradicionais ?
Por André Lima
fonte:
Agência Estado
A discussão sobre patentes relacionadas aos
recursos genéticos é sempre bastante instigante, pois
aparentemente há razoáveis argumentos para os que a defendem e
para os que a rejeitam, notadamente no campo da proteção aos
conhecimentos tradicionais.
As serventias de plantas secularmente utilizadas
pelos povos das florestas em sua alimentação, rituais, combate a
pragas e tratamentos medicinais não raramente oferecem atalhos
para que cientistas encontrem substâncias potencialmente
interessantes para a indústria biotecnológica. De acordo com
Neide Aparecida Marcolino Ayres, pesquisadora do Instituto
Nacional de Propriedade Inteleconhecimento tradicionalual (INPI),
"foi demonstrado que o conhecimento tradicional aumenta a
eficiência em reconhecer as propriedades medicinais das plantas
em 400%. De 120 princípios ativos isolados, utilizados na
indústria farmacêutica, na medicina moderna, 75% foram
identificados pelo conhecimento tradicional associado às
mesmas".
Segundo o Jardim Botânico de Londres, a indústria
farmacêutica movimenta, em todo mundo, com produtos derivados de
recursos genéticos, cerca de US$ 75 bilhões; na indústria de
sementes US$ 30 bi e, em outros campos, mais de US$ 60 bilhões.
Portanto, evidencia-se o grande interesse das corporações e da
Organização Mundial de Propriedade Inteleconhecimento
tradicionalual (OMPI) - e conseqüentemente do INPI - em aplicar
os instrumentos clássicos de proteção à propriedade
inteleconhecimento tradicionalual, notadamente a patente, sobre
os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais a eles
associados.
Entretanto, o sistema de patentes é de
aplicabilidade duvidosa no que tange ao conhecimento
tradicional, por alguns motivos básicos. Vamos a alguns deles
sinteticamente:
1.
Um dos princípios elementares do Direito diz que quem não detém
um bem ou direito com exclusividade não pode ceder a terceiro
exclusividade sobre esse bem ou direito. Com base nesse
princípio, uma comunidade indígena não pode transferir a
exclusividade de um direito sobre um conhecimento, que não
necessariamente lhe pertence com exclusividade. Isso porque
muitos dos conhecimentos tradicionais são compartilhados por
mais de uma comunidade, mais de um povo ou etnia indígena, que
vivem em territórios distintos, não raramente espalhados por
países vizinhos, como no caso da bacia Amazônica.
2.
A patente sobre inovação oriunda de um conhecimento tradicional
significa privilégio/exclusividade a um terceiro sobre um bem
cuja essência é marcada por sua transmissibilidade segundo os
usos, costumes e tradições de um determinado povo. Portanto, se
os direitos culturais desses povos são dignos de proteção,
naturalmente a tradicionalidade do sistema de transmissibilidade
desses conhecimentos - que são indissociáveis à cultura de uma
determinada etnia ou grupo social tradicional - deve ser mantida
livre de condicionantes estabelecidas por um sistema jurídico
externo aos costumes desses povos. O conhecimento é tradicional
pelo sistema de transmissão tradicional, que é oral,
intergeracional, segundo regras próprias de cada etnia, seus
clãs, suas hierarquias internas e não em função de seu caráter
arcaico ou rústico, ou supostamente não-científico. Em síntese,
a exclusividade de uso sobre um conhecimento tradicional,
eventualmente garantida por uma patente sobre inovação gerada a
partir dele contraria a própria essência do "conhecimento
tradicional" e quebra - o que é indissociável -, a relação entre
conhecimento e conhecedor tradicional.
Proteger conhecimento tradicional, por outro
lado, não significa apenas estabelecer mecanismos para controlar
o seu uso ou garantir repartição de benefícios aos seus
titulares. Há uma demanda muito grande por parte das lideranças
indígenas e de outras populações tradicionais (ribeirinhos,
quilombolas, caiçaras, extrativistas...) por informação
consistente e qualificação de seus interlocutores para esse
debate, para compreender as conseqüências das regulamentações,
que vêm sendo discutidas, sem o que a manipulação (para o bem ou
para o mal) dos interesses é inevitável.
Por fim, não é justo abordarmos o tema pela via
de mão única, em que aparentemente somente os cientistas e
indústrias almejam o uso dos conhecimentos tradicionais.
Deveríamos discutir esse assunto pela via da mão dupla, - que é
o que temos feito no Instituto Socioambiental-, ou seja, também
discutindo o fomento ao acesso e uso pelas populações
tradicionais dos conhecimentos não-tradicionais (científicos),
como forma de buscar a melhoria da qualidade de vida desses
povos, tradicionalmente excluídos das prioridades
governamentais, como no caso das políticas de Ciência e
Tecnologia.
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