Abrir
no Word
Água, bem comum
e não uma mercadoria
Por Alcides
Faria em 26/03/2003
Fonte: Estação Vida
Alcides Faria* - As discussões sobre água em quantidade e com
qualidade de modo atender às necessidades humanas básicas e
também a disponibilidade para servir como insumo para a produção
econômica deve, inevitavelmente, ser transversal aos debates em
várias áreas, particularmente quando se tratar das desigualdades
sociais e os modelos de produção. Os atuais sistemas de uso da
água, determinados basicamente pelos grandes interesses
econômicos, são insustentáveis e seguirão afetando as bases de
apoio ambiental e, conseqüentemente, contribuindo para o aumento
da pobreza e até mesmo muitos custos de produção.
Grandes projetos e rios brasileiros
O rio São Francisco espelha a situação dos rios brasileiros. O
barramento para geração de energia elétrica prossegue,
interrompendo de maneira indiscriminada processos ecológicos e,
conseqüentemente, econômicos.
Na bacia Amazônica afora os danos causados pelo assoreamento,
paira a ameaça de construção de um grande número de represas em
rios como o Madeira , o Xingu, o Araguaia e o Tocantins. Na
bacia do rio Paraguai estão previstas, entre pequenas e médias,
a construção de 63 represas o que, se efetivamente vier a
acontecer, afetará toda a dinâmica hídrica do Pantanal, a maior
área úmida do mundo.
No caudal do abandono das ferrovias como meio de transporte de
mercadorias e pessoas, surgiram projetos para transformar alguns
rios em canais para o escoamento principalmente da soja para a
Europa. Os dois casos mais graves são os da hidrovia Araguaia /
Tocantins e Paraná / Paraguai.
O projeto da Araguaia / Tocantins prevê obras em 2.012 km de
cinco estados, passando por dez áreas de conservação ambiental,
incluindo a maior ilha fluvial do mundo - a Ilha do Bananal. O
empreendimento afetará 35 áreas indígenas, com uma população de
10 mil indivíduos. Entre as intervenções, estão previstas 87
explosões com dinamite para destruir formações rochosas as quais
são diques naturais. Esta ação pode levar a grandes mudanças
hidrológicas e na biologia de importantes ecossistemas de
pântanos situados ao longo do curso do rio. A pesca e o
crescente turismo serão profundamente afetados.
No caso da Paraná-Paraguai trata-se da tentativa de construir um
canal navegável de 3400 quilômetros entre Cáceres no Mato Grosso
e Nueva Palmira no Uruguai para que barcaças carregadas de soja
possam transitar 24 horas por dia, os 365 dias do ano. A área
mais impactada certamente será o Pantanal. Para esta região
estão previstas obras que poderão alterar definitivamente suas
características ambientais, afetando atividades econômicas como
a pecuária, a pesca e o turismo.
Desperdício
Um dos mais graves problemas com relação à água é o desperdício.
No país o sistema de produção e distribuição de água para
abastecimento dos domicílios produz anualmente cerca de 4,68
bilhões de m3. Sendo as perdas calculadas em 45% ou 2,08 bilhões
de m3 [Sabesp - Agenda 21]. Afora isto há que se considerar
também a energia utilizada para "produzir" esta água. Caso
estejam corretos dados que consegui junto a companhias de
saneamento esta perda chegaria próximo a 2,7 milhões MW. Na
conta do desperdício de água também devem ser consideradas as
perdas de energia, tendo em conta que 97% da energia consumida
no Brasil é de hidrelétricas.
Segundo o Movimento de Atingidos por Barragens - MAB, se o
Brasil atingir um índice de perdas na transmissão de 6%,
considerado como padrão internacional, o sistema elétrico teria
um acréscimo de disponibilidade de energia elétrica de 33
milhões de MWh, equivalente ao que produz durante um ano uma
usina hidrelétrica de 6.500 MW de potência instalada [ou mais da
de da Usina de Itaipu, que possui 12.600 MW]
Água, um bem comum.
Além do Brasil outros países da América Latina enfrentam graves
problemas. No México, por exemplo, segundo organizações locais,
a administração e manejo da água estão em uma encruzilhada e é
um problema de segurança nacional. Mais de 70% das bacias estão
deterioradas e cerca de 80% dos aqüíferos têm algum tipo de
contaminação. Apenas 12% dos esgotos são tratados. Na
agricultura, responsável por 70% do uso da água, o desperdício é
de mais de 60%.
A epidemia de cólera de 1991-92 levou as pessoas a uma mudança
cultural brutal: o México se tornou o primeiro [ou segundo]
consumidor per capita do mundo de bebidas engarrafadas. As
políticas econômicas no que se refere à água têm apoiado o
subsídio a alguns setores privilegiados da população e da
atividade econômica.
Em várias regiões do mundo muitas evidências estão disponíveis
com relação ao agravamento da "crise" da água no mundo. Na
China, Índia, África do Norte, Arábia Saudita e Estados Unidos o
uso dos aqüíferos excede a capacidade de recarga em 160 bilhões
de toneladas de água por ano. Nos Estados Unidos existem
previsões de que o aqüífero de Ogallala, com 450 mil km2 ao sul
de Plains, estará seco em menos de 15 anos.
Frente a este quadro a solução apresentada por diferentes
governos e instituições multilaterais tem a sido a privatização
da água. Este é um caminho que, na verdade, significa submeter à
vida a interesses de corporações e grandes grupos políticos e
econômicos. Em muitos lugares, mesmo que adotando apenas a
privatização de serviços de distribuição, os problemas estão
aumentando. Na cidade de Atlanta, USA, segundo um artigo
publicado no New York Times, a privatização "naufragou" em
janeiro último. Isto fez com que a municipalidade retomasse o
controle. Segundo uma associação de moradores o serviço é pobre,
precário e repleto de colapsos. Foi criado um sistema de
controle público.
A água é uma herança comum da humanidade e da vida, um direito
humano individual e coletivo e não pode simplesmente ser
reduzida a uma mercadoria. Entendemos faz-se necessário o
desenvolvimento de processos consistentes que levem a mudanças
profundas, inclusive culturais em muitas regiões do mundo. A
gestão democrática deve ser a base para garantir os múltiplos
usos tendo como ponto de partida o pleno atendimento às
necessidades humanas.
Alcides Faria é Presidente da Ecoa e Secretário Executivo da
Coalizão Rios Vivos. Extraído do site da Agência Nacional de
Águas [ANA].
|