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A terra e a mulher


Josina Roncisvalle & Lais Mourão

"O grande espírito traz a marca do feminino. Foi-lhe dado um ventre que concebe e dá à luz." Jung Falar do feminino não significa discorrer apenas sobre questões concernentes à mulher. Ao contrário, falaremos aqui de uma cultura patriarcal que negou aos humanos algumas manifestações legítimas de sua natureza, engessando homens e mulheres em espaços sociais e culturais patológicos, onde estão impedidos de vivenciar e expandir criativamente suas necessidades psico-espirituais mais profundas.

Num primeiro momento, discutir as questões do feminino pode parecer um tema extremamente óbvio quando se tem alguma leitura, ainda que superficial, haja vista que há pelo menos três décadas as mulheres queimaram sutiãs em praça pública, numa atitude simbólica de rejeitar os enquadramentos que lhes eram impostos desde alguns séculos. A partir desse ponto, muita coisa foi produzida e essa discussão tomou ares do corriqueiro.

Entretanto, tão logo nos aventuramos a discorrer sobre o assunto, nos deparamos com componentes tão vários que toda a segurança anterior se vê fragilizada, face às excessivas conexões que nos aguardam a cada passo.

A questão do feminino está entre aqueles temas que não se prestam tão facilmente a uma discussão, porque se situam no fundamento da cultura, para além daquilo que é imediatamente manifesto. Esse é um assunto basilar, constitutivo do próprio fundamento de onde tudo deriva, a trama primeira sobre a qual os outros fios são dispostos. De certa forma, pode-se dizer que tais temas nos possuem e nos dirigem e são insuficientemente visíveis, pois estão submersos por nossas criações. Talvez se possa dizer que é a partir dessas imagens primordiais, como a da Terra-Mãe, que todo o nosso imaginário é montado, em camadas, uma mesma idéia se diferenciando em inúmeras variações, vinculadas, entretanto, àquele desenho elementar, e que só ao olhar acurado ela se revela.

Na verdade, as nossas relações com o mundo, de modo geral, são reflexo da nossa relação com essas imagens primordiais, destacando-se, entre elas, a Terra e o Feminino. Tudo o mais seria como um jogo de espelhos, em que nos perdemos com imensa facilidade. De forma que, ao contrário do que é sugerido de imediato, uma visão cabal do feminino não se tece sem uma enormidade de elementos e, pelo menos para começar, torna-se imprescindível escolher uma fresta apenas, para olhar esse complexo quadro sem tanta dispersão.

O simbolismo da Terra pode nos fornecer um paradigma seguro para o feminino, porque sobre ela lançamos nossas raízes, dela viemos, dela nos nutrimos. Há todo um paralelo entre a Terra e o Feminino. E, uma vez que mantemos relações bem materiais com ela, é possível que, a partir de um escrutínio dessas relações, possamos explicitar melhor o lugar ocupado pela mulher em nossa cultura. A Terra, pois, será um bom ponto de partida para uma investigação rica do feminino, quanto mais que essa identidade, em outros tempos, promoveu um desenvolvimento harmônico em muitas sociedades.

Portanto, não partimos de uma idéia original. Muito pelo contrário, essa é uma visão que remonta a alguns milhares de anos, cultivada e vivenciada por nossos ancestrais em culturas das quais restam apenas o que a arqueologia consegue resgatar. É para com essas culturas que nos tornamos devedores. E, ao lado delas, para com algumas outras poucas sobreviventes, ditas primitivas, pouco influenciadas e pouco influentes no nosso mundo industrializado e globalizado.

Investigando sobre alguns povos do passado, podemos ver que suas relações com a Terra eram de filhos para mãe. As culturas eminentemente agrárias, no Neolítico, tinham em seus cultos religiosos a figura da Terra como divindade máxima, a Deusa Mãe. Era ela a geratriz e mantenedora de tudo o que era vivo. O corpo da terra era o próprio corpo da Deusa. Desse fio teciam-se todas as relações sociais, os sistemas políticos, econômicos, a arte, enfim todas as produções humanas.

As antigas civilizações agrárias do Mediterrâneo alcançaram níveis extraordinários de organização e riqueza. Porém, a certa altura, essas culturas foram invadidas por tribos nômades vindas do norte, de povos pastores e guerreiros. O processo de ocupação dessas sociedades agrárias pelos invasores resultou na destruição dos valores dessas culturas, que eram essencialmente pacíficas.

A partir daí, gradativamente, foi-se construindo essa civilização ocidental da qual somos herdeiros. Daqueles povos antigos, o Egito, graças a seu isolamento pelos desertos, foi o território que mais se preservou de tais invasões. Mas é nas ruínas de Creta que vamos encontrar os mais ricos vestígios desses povos, em cujo seio o culto à deusa Mãe Terra alcançou grande apogeu e pôde sobreviver por mais longo tempo, deixando traços ainda hoje detectáveis em nossas festas populares, folclore e cultos religiosos.

O ponto alto dessas culturas agrárias era a relação de sacralidade com a natureza. A Terra, a grande matriz, mãe de todos os deuses, era respeitada em todos os seus ciclos. Obedecia-se, de fato, às necessidades da Terra e ela correspondia. Produzia e descansava, doava e era gratificada por isso, em forma de festas e cuidados. As atitudes humanas eram orientadas pela concepção de que a Terra era um ser vivo, com suas demandas e suas necessidades. Acima de tudo, com sua dadivosidade.

As contrapartidas dos humanos eram a gratidão e a reverência. O arado, que feria a terra para o plantio, era o grande falo que a penetrava e o instinto religioso gerava grandes rituais para pedir licença antes de fertilizá-la com uma nova semente. Para nossos ancestrais agricultores, os primeiros frutos das colheitas não eram avidamente apropriados pelo homem, nem vendidos nas feiras ou antecipados às bolsas de mercadorias. Eram doados de volta à Mãe Terra, cerimonialmente, acompanhados de cantos e danças, celebrações das quais sobreviveram apenas pálidas recordações profanas.

Nesse contexto, a mulher era a própria imagem da Deusa Terra, que, à sua semelhança, emprestava seu corpo para a fertilização, a criação e a nutrição da vida. São dessa época as inúmeras imagens da deusa Terra representada com corpo de mulher: deusas grávidas, deusas amamentando o filho, deusas vingativas, deusas eróticas com seu triângulo púbico a indicar a fertilidade. Ou mostrando sua vulva e convidando o homem a ará-la, como nos cantos da deusa sumeriana Inana, mais de dois mil anos antes da nossa Era:

"Minha vulva, a meia-lua,

o Barco do Céu,

Está cheia de avidez como a jovem lua.

Minha terra não lavrada está abandonada.

E eu, Inana,

Quem irá arar a minha vulva?

Quem irá arar meus altos campos?

Quem irá arar meu chão úmido?"

(in A Prostituta Sagrada. A Face do Eterno Feminino, Nancy Qualls-Corbett, pp.160).

Para os sumérios, a deusa Inana era uma representação do planeta Vênus e a relação de seus ciclos com períodos favoráveis de plantio era bem conhecida.

Assentadas nesse fundamento, essas culturas privilegiavam a arte, o equilíbrio ecológico e o respeito à vida em todas as suas formas. Inúmeras divindades desse período têm representações teriomórficas, evocando claramente uma identificação da presença de qualidades universais em todas as espécies. O touro, o leão, a serpente, o urso e uma quantidade grande de animais são associados à deusa, numa demonstração inequívoca de que as culturas antigas conheciam e respeitavam o princípio da vida em todas as suas manifestações. As pedras sagradas, as plantas e outros elementos naturais agregados aos cultos também indicavam quão profundo era esse vínculo com a natureza.

Também na Mesopotâmia e no México antigo, eram conhecidas as influências infalíveis da regularidade dos ciclos de oito anos do planeta Vênus sobre a agricultura, e esse conhecimento era aplicado coerentemente Conhecendo o céu e a terra, seguiam o curso dos planetas e plantavam e colhiam conforme suas aparições e ocultações.

A noção do tempo como uma roda cíclica era, portanto, um eixo extremamente valioso, que organizava aquela visão de mundo. Observando o céu, convivendo com a terra, os humanos sabiam que tudo nascia, crescia e reproduzia-se, para morrer em seguida; tudo, sem excessão, morria para que o mundo se renovasse. Esse era o grande mistério da criação. E, de alguma forma, como a lua e os outros astros celestes, que cumprem suas rotas regularmente, tudo se restabelecia um dia, havendo um antes e um depois, uma continuidade indiscutível da vida, mesmo finda a duração do indivíduo.

O mundo era de fato um cosmo: céu, terra e seres humanos em unidade, movidos por uma cumplicidade em benefício da criação.

O que nos aconteceu?

"O conhecimento tem suas limitações e o sagrado tem aquilo a respeito do qual nada se pode fazer." Chuang Tzu.

A interdependência entre todos os reinos da natureza, uma verdade tão patente para nossos antepassados, é grande demais para nossos cérebros atuais. Parece que nos escapa a essência de algo muito essencial. Ou, como diz o astrônomo-antropólogo Anthony Aveni, em seu livro Conversando com os Planetas, "o que nos escapa é que maias, egípcios e babilônios acreditavam viver em um Universo animado, um ambiente interativo, pulsante, fervilhante e vibrante".

Sem dúvida, nas culturas antigas de que falamos, nem tudo eram virtudes. Havia a ganância, a pilhagem, os assassinos, usurpadores, etc. Isso é tão certo como também o é o fato de que, hodiernamente, muitas daquelas idéias sobrevivem no coração de muitos homens, talvez menos contaminados pelo utilitarismo. O que se discute é a dominância ou não desses paradigmas, num tempo e noutro. É isso que nos distingue e cava um abismo entre o que somos e o que poderíamos ser.

Tudo indica que, ao se identificar com as pulsações da Mãe Terra, através de seus mitos e ritos, nossos ancestrais pareciam menos desnorteados. O próprio ciclo do tempo representava uma bússola segura para suas vidas. Quando as coisas se passavam diferentemente dos desejos humanos, era porque estes desejos não estavam alinhados com o plano maior da natureza. Em outras palavras, os seres humanos se inscreviam simbolicamente numa ordem cósmica da qual, muitas vezes, não detinham o controle e a possibilidade de manipulação. E, contudo, mesmo assim, retinham o seu fundamento e se colocavam de acordo. O mistério era admitido e seu espaço respeitado. Os humanos reconheciam sua inserção e sua limitação, subordinavam-se a uma instância que lhes era superior. Esse sentimento impedia que se colocassem como senhores absolutos da natureza, barrando-lhes qualquer possibilidade de exagerado auto-engrandecimento.

O pensamento simbólico, que serve de código para expressar a visão mítica do mundo, unindo o humano ao todo da Mãe Terra, é capaz de nortear o sentido de ritmo e responsabilidade em cada um. Inserindo-se nos ritmos cósmicos, o ser humano era definitivamente integrado neste mundo, e sua vida, sua religião, todas as suas criações, tudo espelhava essa relação básica.

O uso desse tipo de linguagem simbólica, característica diferenciadora de nossa espécie, sempre teve o poder de traçar correspondências, criar pontes invisíveis onde o pensamento racional não é capaz de alcançar. Colocando-nos em correspondência com o Cosmo, permite que orientemos nossas ações em harmonia com os ritmos do todo.

Além do mais, viver simbolicamente implica em ter os olhos abertos para a multiplicidade da vida, para perceber a diversidade dos espaços e as alterações substanciais no tempo, seguindo a sinuosidade dos ritmos do Universo, encontrando mecanismos de adequação a cada estágio. Mas isso só pode ocorrer ali onde o princípio feminino ainda cumpre a sua função de manter os laços estreitos entre todos os seres, uma vez que a relação entre sua dinâmica e a da natureza é muito patente.

Para o homem arcaico, havia os mitos e ritos, que transportavam-no com segurança de um momento a outro ou presidiam as mudanças de sítios quando era necessário. É fácil perceber, portanto, como esse exercício se torna impossível na fragmentação das sociedades industriais, onde somos obrigados a viver num mundo homogeneizado, massificado pelas demandas da produção e do mercado, excluída qualquer disponibilidade para vinculações.

Algumas centenas de anos foram suficientes para que nossa espécie se assenhoreasse da natureza e do tempo. E o que fez com eles? Despojou-os de qualquer caráter sagrado, ungiu um único deus, distante do convívio de todos os seres, fora da natureza, muito além, num céu longínquo e abstrato, de restrito acesso aos eleitos. Tudo o mais foi banido como heresia e tolerado apenas como veleidades de mulheres com pouca capacidade de exercer o pensamento racional.

Dentro dessa ótica, portanto, muitos desdobramentos têm como origem a ruptura com o paradigma da Natureza, da Terra e do Feminino, enquanto entidades sagradas, capazes de servir de modelo para nossas ações. Quando podíamos acatar as leis da natureza como uma guiança, longe de ser exclusivamente uma questão de conformismo, nos aparentávamos com ela e isso nos trazia apaziguamento.

Hoje, se olharmos para nossas vidas, para qualquer ponto, mesmo que de menor importância secundária, podemos perceber o quanto nos tem custado o distanciamento da natureza, tanto sob o aspecto material, como de nosso bem-estar geral. E nos perguntamos abestalhados (que nos perdoem as bestas!): "o que nos aconteceu?" E as respostas se multiplicam sem, contudo, fornecer um resposta satisfatória, que nos conduza a uma solução. Talvez, como na história do rei ferido, do Graal, não estejamos formulando a pergunta corretamente e, só ao fazer a pergunta certa, encontraremos nossa cura